Quando idealizou a ultramaratona Comrades Marathon, no começo dos anos 20, o veterano de guerra Vic Clapham provavelmente não imaginou que, em 2017, milhares de corredores de todas as partes do mundo estariam viajando para a África do Sul para percorrer 87 km entre as cidades de Pietermaritzburg e Durban*, em um circuito criado por ele em parceria com a Liga dos Camaradas da Grande Guerra.
A força criativa por trás da ultramaratona marchou 1700 milhas pela África Oriental, junto ao 8º Batalhão de Infantaria sul-africano, durante a 1ª Guerra Mundial, onde passou por muitas privações e teve que dar adeus a muitos companheiros que morreram em combate. O sofrimento vivido por Clapham o motivou a criar um memorial aos seus “camaradas”, cujo companheirismo e lealdade o acalentaram em meio a grandes provações.
A primeira edição da Comrades aconteceu no dia 24 de maio de 1921, com a participação de 34 corredores. Desde então, passou a ser promovida anualmente, exceto entre os anos de 1941 e 1945, devido à Segunda Guerra Mundial. Em 1975, foi permitida pela primeira vez a participação de mulheres e não-brancos na prova, que foi se tornando mais inclusiva a cada ano.
Hoje, a Comrades tem estrutura para receber até 20.000 corredores. Na edição de 2017, o brasileiro Iago Sampaio Marçal esteve entre eles. Nascido em Barueri, São Paulo, ele vive na África do Sul desde 2017, onde trabalha como consultor de vendas. Em seu tempo livre, além de correr longas distâncias, ele alimenta um canal no YouTube chamado Dia Premiado, produzindo conteúdo multimídia inspirador sobre o universo das corridas e suas experiências em diferentes países.
Na entrevista a seguir, ele conta à Rhino Africa como participar da Comrades foi importante em sua trajetória como corredor, além de compartilhar detalhes emocionantes da prova e de sua experiência morando na África do Sul.
Qual foi a prova mais importante que você já participou?
Sem dúvidas a Two Oceans, de 56km, e a Comrades Marathon, de 87km.
O que te motiva a correr e qual é parte mais gratificante do esporte?
Eu me sinto mais vivo, ativo, útil, sinto que estou escrevendo importantes capítulos da minha vida. É realmente uma grande realização pessoal. A parte mais gratificante do esporte é ver que nós somos o esporte, e não a plateia. A corrida só existe porque nós corremos, não é um esporte onde se acompanha em frente a TV.
O que te motivou a correr a Comrades? Foi a sua primeira vez?
Sim, foi a minha primeira participação na Comrades, era um grande sonho desde quando eu comecei a correr em 2013. No início eu queria correr a Comrades porque todos diziam que ela era muito difícil, mas aos poucos fui conhecendo mais a prova e me apaixonando por toda sua história e tradição.
Qual foi a sua reação ao ler sobre a história da Comrades?
Fico extremamente emocionado com a história e espírito da Comrades. Para os que não sabem, ela foi criada por ex-combatentes de guerra como forma de homenagem aos amigos que morreram em campo de batalha. A Comrades para mim é mais que uma corrida de 87km, é um evento esportivo que muda a vida de todos os seus participantes pela forma que acontece e como foi criada. Vale mencionar também que a Comrades apoia diversas ONGs locais e causa um impacto positivo na vida de milhares de sul-africanos.
Como foi seu treinamento para a prova?
Meu treinamento foi solitário e de grande autoconhecimento. Em 2016, eu ainda morava nas Ilhas Fiji quando comecei o meu treinamento, então o sol deixou tudo mais difícil. Eu treinava corrida cinco vezes por semana entre treinos de velocidades e longas distâncias, não frequentei academia mas fiz diversos outros exercícios repassados pela minha treinadora Candyce Hall do clube de corrida Carbineers Western Province. Em média eu corria cerca de 60km por semana, e fiz diversos treinos com subidas intercalando com caminhadas.
Conte-nos como foi a corrida.
Emoção do início ao fim. Logo na largada me emocionei muito por tudo que passei até chegar naquela dia, e por quanto eu fui feliz em aos poucos vencer cada etapa nos meus treinamentos, na minha vida profissional e pessoal. Treinar para provas longas como a Comrades pode afetar de uma forma positiva ou negativa em diversas áreas da nossa vida. Lembro muito bem que nas primeiras subidas eu conseguia ver aquele “mar” de corredores, mais de 19.000 de todos os cantos do mundo! Apenas estando lá para entender o quanto isso é gratificante.
Eu adotei uma estratégia de correr 9min e andar 1min desde o início da prova, e em fortes subidas correr 1min e andar 30seg, o que funcionou bem até certo ponto, mas haviam trechos que as subidas eram intermináveis me obrigando a parar até mesmo para receber uma rápida massagem. Lembro de por alguns momentos correr com corredores que já completaram a Comrades mais de 40 vezes, eu sempre tentava manter eles como referëncia para saber se eu estava indo rápido demais ou não.
Sem dúvidas o nosso sucesso se deve também a todas as pessoas pelo percurso que nos apoiam com palavras, comida e até mesmo música. Eu mesmo parei cerca de duas vezes para dançar com as pessoas, bater na mão da criançada e retribuir todo o bem que eles estavam nos fazendo.
Eu tinha como objetivo terminar a prova abaixo de 11h e consegui concluir em 10h41. Faltando cerca de 1km para finalizar a prova minha treinadora estava me esperando para me parabenizar, desde esse ponto não parei mais de chorar até cruzar a linha de chegada!
Sempre corro com minhas meias vermelhas que foram criadas como forma de amizade entre dois combatentes, e faltando cerca de 500m eu tirei meu tênis para que todos vissem-nas. Esta foi minha forma de dizer obrigado a todos que mesmo de bem longe me mandaram forças para que eu realizasse mais esse sonho.
Qual foi o momento mais crítico da prova?
Sem dúvidas entre o km 50 e 70 quando minhas pernas realmente já estavam bem castigadas e eu não conseguia mais correr com frequência ou comer. Nesse momento eu pensei muito em desistir e de não correr mais a Comrades porque é muito sofrimento para um dia só… Eu estava ainda na metade da prova e minhas pernas já não me obedeciam mais.
No km 70 encontrei com um brasileiro chamado João e ele me deu um anti-inflamatório que com 10min fez efeito. Depois disso me senti tão bem, mas tão bem que sentia que poderia correr os 16km restantes mesmo com tantas subidas que ainda estava por vir. Fiquei pensando até o final da prova se na África do Sul tem esse anti-inflamatório, porque realmente isso salvou a minha prova! (risos)
Voltei a sorrir mais, dançar com a torcida, brincar e compartilhar com meu amigo João kms de muita alegria. Nós chegamos juntos e com a bandeira do Brasil é claro.
Que conselhos você daria para quem deseja participar de uma Comrades Marathon?
Constumo dizer que todos que queiram muito correr a Comrades sem dúvidas pode completá-la se tiver a mente e um coração forte.Treinar sem dúvidas é algo necessário, mas encontrar um equilíbrio entre treinos e vida pessoal também poderá ajudar bastante a não correr com uma certa pressão só porque você gastou tanto tempo treinando. Algo essencial é aprender a frequência e o momento certo de caminhar, porque para nós mortais correr a prova toda é quase impossível.
Quais serão as suas próximas provas?
Como já concluí meu objetivo do ano, agora prefiro descansar, mas em dezembro irei correr a Ultra Trail Cape Town (35km). Acredito que será uma prova bem especial porque vamos subir a Table Mountain e também porque irei fazer a prova com minha namorada que está começando a correr.
Qual foi o maior exemplo de camaradagem que você já vivenciou em uma prova de corrida?
Diria que foi na Maresias Bertioga 75km, em 2016, quando meu amigo Marcelo Marques me apoiou nas mais de 9h de prova de um dia chuvoso. A prova aconteceu em um sábado de manhã e ele, após o seu trabalho, dirigiu do Centro até Maresias em plena sexta-feira só para me ajudar na logística da prova com alimentação/hidratação e também dar aquele apoio emocional. Para mim foi um grande gesto de camaradagem e devo a ele o sucesso de completar essa prova.
Como você foi parar na África do Sul e como foi a sua primeira vez por aqui?
Eu tenho um canal no YouTube sobre corridas e viagens chamado Dia Premiado, e fiz recentemente um vídeo explicando como vim parar aqui, e como a Comrades me influenciou nisso tudo. (O vídeo pode ser assistido abaixo)
Há quanto tempo você mora no país?
Moro na Cidade do Cabo desde março de 2017, mas também estive aqui por 6 meses em 2015 quando eu estava estudando inglês.
Como foram suas experiências na África do Sul e sua relação com ela?
Até o momento tem sido incrível, conheci pessoas maravilhosas e inspiradoras e vivi grandes aventuras. A minha relação com a corrida fez com que a África do Sul se tornasse um destino ainda mais interessante. Antes mesmo de eu chegar aqui eu já tinha alguns amigos locais através das redes sociais por conta da Comrades Marathon e de alguns projetos filantrópicos. Eu, sinceramente, não saberia dizer que lugar do mundo eu moraria se não fosse na Cidade do Cabo porque realmente amo este lugar e é onde quero estar pelos próximos anos.
Não deixe de visitar o canal de Iago, Dia Premiado, e conferir seus vídeos que inspiram corredores e não corredores a perseguirem suas metas e sonhos.
*A direção da Comrades muda a cada ano, o que traz ligeiras alterações à sua quilometragem. Em 2017, a prova começou em Durban em descida para Pietermaritzburg, mas há edições em que o circuito é iniciado em Pietermaritzburg em subida para Durban, em uma rota de 89km.