Dezembro 1

A extraordinária dança típica do povo San de Kalahari

Por Nathalia Marangoni em
Dezembro 1, 2017

É pôr-do-sol no Deserto de Kalahari e membros de uma tribo San – é comum encontrar textos em inglês se referindo ao grupo étnico como “bushmen”, um apelido dado pelos colonizadores europeus, que em português significa “bosquímanos” ou “homens do mato” – estão se preparando para uma de suas danças típicas. Alguns sentam e outros dançam, enquanto o bater de palmas rítmico e os cantos operam como uma batida contagiante que atrai os dançarinos para ao redor do fogo.

Jack's Camp Botsuana

Os chocalhos amarrados às suas pernas adicionam tempo à canção. Feitos de coco seco e estufados com pedaços de casca de ovo de avestruz, estes chocalhos são usados para reproduzir um som de percussão enquanto as pernas se movem durante a dança. Com palitos finos em suas mãos, os San se movem ao redor do fogo em um pequeno círculo, marcando a areia e formando um anel cinza escuro.

Jack's Camp, Botsuana

Este relato foi escrito por Matthew Sterne em sua jornada por Botsuana pela Rhino Africa (para ler o conteúdo em inglês, clique aqui). A jornada lhe inspirou a escrever uma série de artigos sobre o país, sua cultura e vida selvagem. Em sua segunda semana por lá, ele já havia visitado o prístino Delta do Okavango e o vibrante rio Chobe, antes de passar um dia com os bosquímanos Zu/’hoasi em Makgadikgadi Pans para aprender sobre sua cultura e tradições, oportunidade que oferece uma vitrine singular sobre um passado distante.

Jacks Camp, Botsuana

A ‘trance dance’, também conhecida como ‘dança da cura é o elemento mais misterioso dos San de Kalahari . É um ritual no qual um estado de consciência alterada é atingido durante a dança rítima e hiperventilação. Durante as danças, que podem durar a noite toda, os San acreditam estar imbuídos da potência animal e têm acesso a um reino espiritual onde podem entrar em contato com Deus, lutar contra espíritos malígnos, ganhar poderes de cura e ter visões.

Jacks Camp, Botsuana

A combinação de movimentos de dança repetitivos com o canto, palmas e tambores, ajuda a liberar o n|om (força vital) nos homens que dança ao redor do círculo na base de sua coluna vertebral. Quando o  n|om é ativado dessa maneira, a energia move seus seres, o que promove autocura e os dá o poder de ajudar a curar os outros também.

Os San acreditam que esta energia espiritual permite que os curandeiros superdotados “vejam” a doença em outros e usem suas mãos curativas para afastar fisicamente a enfermidade de um paciente. Também pode ser usada para curar aspectos negativos da comunidade, como raiva e conflitos.

Início de preparado de uma fogueira, Botsuana

Eles dançam e passam por nós, batendo os pés e depois os arrastando, enquanto os observamos com fascínio. Seus corpos se movimentam com um ritmo próprio, respondendo à dor que pulsa através de seus corpos. Um homem em especial parece inundado de emoção. Ele grita com uma voz estranha e seus olhos, que parecem nada enxergar, são um sinal de que ele foi tomado por espíritos. Com lágrimas escorrendo por suas bochechas, ele se inclina para a frente caindo de joelhos como uma girafa derrubada e, logo antes de seu rosto atingir o chão, ele é segurado por aqueles que o rodeiam.

Jacks Camp, Botsuana

Visitar os San pode oferecer um olhar único sobre o passado, mas é seu futuro que preocupa muitas pessoas. Os Zu/’hoasi são afortunados o suficiente de ainda conseguirem viver em sua terra natal e manter seus costumes tradicionais. No entanto, a grande maioria dos San de Botsuana não têm a mesma sorte. Seu estilo de vida está desaparecendo lentamente – a descoberta de diamantes no país durante os anos 80 foi um catalisador para atrair a atenção de políticos gananciosos e gerar remoções forçadas. As batalhas judiciais estão em curso há mais de uma década sobre o acesso à terra e seu deslocamento. Enquanto o tempo passa e os San passam mais tempo às margens de suas terras, impedidos de engajar em caçadas tradicionais e expostos à vida moderna, a perguntas que muitas pessoas estão se fazendo é: o que o futuro reserva para um dos povos mais antigos do mundo?

Jacks Camp, Botsuana

Existem mais de 100 mil membros dos San em Botsuana, Namíbia, África do Sul e Angola. Eles são os povos indígenas da África Austral e viveram aqui, nos ambientes mais severos, por dezenas de milhares de anos. Ao longo desse tempo, eles desenvolveram seu vasto conhecimento sobre as plantas, comportamento animal e habilidades de sobrevivência. São capazes de sobreviver sem água de superfície ao enterrar ovos de avestruz no subsolo para extração da água. Eles têm uma linguagem extremamente complexa caracterizada pelo uso de sons de clique, caçam utilizando flechas venenosas e possuem habilidades de rastreamento impecáveis. Habilidades que estamos apenas agora começando a verdadeiramente entender.

zebras em Jacks Camp, Botsuana

De acordo com o livro de 2009, “Born to run”, de Christopher McDougall, Louis Liebenberg passou anos com os San de Kalahari aprendendo sobre suas tradições e modos de vida. Depois de muitos anos, eles finalmente mostraram como realizavam suas caças. Para rastrear um animal, eles “se colocavam na mente de um animal que estavam tentando caçar”. Isso é conhecido como “caça especulativa”, onde se projetam para o futuro, para prever o que o animal fará, ao ponto em que entram em um estado de transe. Eles correriam por horas – até 80 quilômetros – atrás de um animal e só parariam depois que morressem por exaustão. Esse tipo empático de caça foi um dos primeiros sinais de pensamento e consciência criativa da humanidade. A descoberta de Liebenberg foi um grande avanço para o estudo e a compreensão dos San.

Antes da dança, os Zu / ‘hoasi compartilharam seu conhecimento tradicional de caça e colheita de alimentos, bem como a criação de joias e equipamentos de caça. Nos ensinaram usos extraordinários para plantas de aparência comum, como espremer a água de um melão do deserto, e observamos os homens preparando arcos e flechas. Algumas das mulheres nos mostraram como elas produzem miçangas feitas de ovos de avestruz e joias simples e, ao mesmo tempo, impressionantes, que criam a partir de cerdas de porco-espinho, sementes e ovos de avestruz. O compartilhamento de informações retratou um modo de vida fascinante, mas que está lentamente desaparecendo. Jack’s Camp é um dos poucos lugares deixados no mundo para vivenciá-lo.

Veículo de safári em Jacks Camp, Botsuana

Durante a maior parte do ano, a maior parte desta área desolada permanece sem água e extremamente árida; grandes mamíferos estão geralmente ausentes. A estação chuvosa, no entanto, abre passagem para uma paisagem totalmente diferente. Os dois maiores salares – Makgadikgadi é, na verdade, uma série de salares intercalados por dunas de areia, ilhas rochosas e terrenos desérticos – se tornam um lago azul, que atrai animais selvagens como zebra, girafa, cefo e gnu em suas planícies gramíneas, e mais espetacularmente flamingos no Sowa and Nata Sanctuary. Números de flamingo podem chegar a dezenas e, às vezes, a centenas de milhares. O espetáculo é esmagador.

fogueira em Jacks Camp, Botsuana

Os San continuam, batendo seus pés e dançando ao redor do fogo, embalados pela canção e as palmas de sua tribo. O nosso tempo com eles acabou e, calmamente, vamos embora enquanto seus cânticos hipnóticos e melodias ondulantes perduram. Eles continuarão assim por horas, ao longo da noite e pela manhã, curando seus doentes e fortalecendo seu grupo, enquanto seu fogo ilumina os rostos e a via láctea brilha acima deles em um céu noturno sem nuvens.


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Sobre o autor

Nathalia Marangoni

Nascida e criada na cidade mais populosa da América Latina, São Paulo, Nathalia tinha 13 anos quando ouviu pela primeira sobre Cape Town em um programa de TV. Depois de estudar Jornalismo, ela trabalhou por alguns anos em uma ONG dedicada ao empoderamento e empreendedorismo feminino, o que lhe permitiu viajar por diferentes regiões do Brasil, entrevistando e fotografando mulheres muito fortes. A experiência levou Nathalia a se sentir confiante o suficiente para se mudar de sua cidade natal e, finalmente, ver Cape Town com seus próprios olhos: um desejo antigo que dividiu águas em sua vida.

  • Meu nome é Luiz Guilherme Marques. Estou no Facebook com uma página em meu nome e criei um grupo chamado A África e sua Cultura. Meus parabéns pelo seu texto e convido-a a visitar meu grupo acima referido.

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